sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Loucura


Quero-te loucura,
és a abrupta harmonia na quietude do imperceptível,
orgasmo de silêncio a cintilar nos alvéolos do instante.
Porque me foges
quando na orla intemporal do teu cataclismo
há uma apoteose inesgotável de existência.

Vem loucura,
iça-me para a integridade vacilante da alucinação,
rouba-me a imutável tragédia do deslumbramento.
Exala-me de ânsia
para que possa naufragar
no imenso extravio da inquietação,
no fulgor translúcido do desconhecido.

Eu não quero mais andar vendado
por este caos decadente
que emerge no decalque original do vazio.

Deixa-me deambular
na indelével relutância do pressentimento,
desabar na irrequieta limpidez entre o nada e o nada.

Poema - Alberto Pereira

Video/Voz - Zélia Santos


quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Adeus



Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Bairro de lata



No fim de um estreito carreiro desembarca um mundo perdido.
Uma floresta de tábuas eriçadas que se espreguiçam na miséria, dão abrigo aos homens mudos de sonhos.
O horizonte merenda a arquitectura desordenada dos telhados de zinco que cobrem a madeira nua que treme de podridão. Em cima deles um sem número de inutilidades; pneus, tijolos e lixo reciclado pelas mentes que necessitam de guardar alguma coisa para enganar a desilusão.
Não se ouvem pássaros, apenas gritos e rumores das mulheres que dissecam cada pormenor da vida alheia. Estas não usam cremes, os seus cheiros são meteorológicos, pois o pouco dinheiro que lhes resta serve para saciar a fome à realidade.
As crianças correm, são “livres”, embora habituadas a sentir o álcool enfurecer as mãos dos pais sem razão plausível. Joga-se à bola, ao berlinde e às escondidas. Realizam-se os jogos olímpicos várias vezes por mês, com prémios de cortiça e taças feitas com garrafas de óleo, cabos de vassoura e pratas retiradas dos maços de tabaco já consumidos.
Os homens embriagam os dias de esquecimento, os filhos com a infância engarrafada lavam o futuro na revolta.
Aqui abrem-se as portas à memória, o tempo acende o sono dos sorrisos e a cada dia que passa nascem ilhas.