segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O HOMEM CAÍDO



Alugam-se quartos na memória.
Os neurónios mobilados
com pensamentos carnívoros,
babam máscaras
na castração mental.
Rangem aflições
no metropolitano cardíaco,
chegam carruagens ácidas
ao apeadeiro corporal.
Nas veias descem cicatrizes
decotadas de madrugada
e os homens caídos
rendilham o sangue sulcados na desolação.

Alberto Pereira

Poema do livro "O áspero hálito do amanhã"

sábado, 17 de outubro de 2009

1º Prêmio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana



Das 3027 obras a concurso, provenientes de 26 países,
encontram-se dois poetas portugueses,
Luís de Aguiar e Alberto Pereira
que ficaram respectivamente em 2º e 3º lugar.



1º : Nicolas Diaz Badilla - Chile

2º : Luís de Aguiar - Portugal

3º : Alberto Pereira - Portugal





2º Luís de Aguiar



O LIMITE DO MUNDO


Ter o limite do mundo
no risco maduro da mão
um golpe profundo
rasga a bolsa das águas
e liberta o feto
com nervos fibras e sangue
e ossos transparentes
O músculo do feto
encharca o interior da mãe
e suas válvulas
átomos de luz
O suor de Deus no líquido
amniótico.







PEDRA ANGULAR


Eis a pedra angular
a tornar-se redonda antónimo
de velocíssima espuma
Imagina a tua alma
uma sede amarela
viva seda prurido vermelho
criado
sem pálpebras ou outros lençóis
O ressurgir do assassínio
dos buracos na mente
onde nasceu a argila
e o homem multiplicou-se
na viva ferocidade
do âmago do grão sémen de sol







CLARIDADE OU SÍMBOLO


Escoa-se a casa
rama de cobre
caule atado ateado
fruta enlaçada
no anzol astrológico
Na minha visão nudez
algum transe
claridade ou símbolo
uma insónia
a pernoitar no crânio
enquanto o bebé explode da mãe
e a mãe avé maria
do chão ao céu
E sufocam as jóias
o mármore destapado bordado
por unhas grandiosas
A casa
rama de cobre
ânus semeado
violado espelho de luz





3º Alberto Pereira



AFINADOR DE NUVENS


Passo as horas a afinar nuvens,
a ouvir-te trovejar nas veias.
Desde que me embargaste o corpo
com a tempestade,
nunca mais me aproximei de mim.
O céu ficou senil,
gesticula apenas uma miserável nódoa de paraíso
onde componho sinfonias com veneno.

A cabeça estremece,
tenho a memória raptada por sonetos indígenas.
Esfuziante o teu rosto desarruma o ódio.
Atravesso a pólvora, estrangulo o nevoeiro.
Na leveza do silêncio a garganta dorme.

A peregrinação de cactos
nunca impediu nada.
E ali estás tu,
o catálogo de precipícios
que não esqueço.

O coração é um relâmpago
a legendar cicatrizes.



CREPÚSCULO NÚ

Nasci louco, fui perdendo o corpo no manejo dos anos.
A terra não vigiava os passos,
falavam desse mar invertido calafetado sobre as cabeças.
Depois encostaram adultos aos brinquedos
e estes ficaram amargos.
Mataram-me as lendas nos olhos
quando os dias degolaram a inocência.
Apenas conhecia a mitologia de quatro paredes.
Cá fora os homens reivindicando o inferno,
sujos, cambaleantes, pulverizando nódoas.
As mulheres varrendo desejos,
organizando o idioma decimal da solidão.
Encostadas às esquinas, as crianças vazias
a ensinar a corrupção à memória.
Falavam das namoradas que nunca conheceram,
amavam-nas loucamente nas revistas que não sabiam decifrar.
Tinham as imagens, o rumor pueril no adro do olhar.
Passeavam pelo magnetismo, convictos que no fundo do abismo
a transparência respiraria a sua voz.

Olham agora para trás,
espiam o sangue que coxeia no coração.
Escoa-se como um touro ferido tombado nos ventrículos.
Há já mais poeira do que cor, pergunta-se até,
para quê sangue se rezar nos pulmões não parou a névoa.

O futuro são cães a morder relâmpagos.



IMPOSSÍVEL


Chegar a ti, impossível.

As manhãs já não dizem tempo,
só o silêncio sabe o teu corpo inteiro.
Escorrego por cada palavra,
convenço a pele que não morreste.
Imagino-te ainda como se o sangue
pudesse adormecer.
Eu digo,
o sonho é ouro desavindo,
uma tocha louca no coração afogado.

As manhãs já não dizem tempo,
a mocidade das coisas
dança na peregrinação da distância.
Há beijos inebriados
que procuram a memória,
como se ontem não fosse noite.

Tenho os olhos rachados
pela obesidade das lágrimas,
são tantas as que despenteiam a ilusão.

Talvez nunca seja sempre,
por isso parto.



http://ocadasletras.com.br/?module=noticias&action=noticia&ID=5

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

CONCURSO DE POESIA/CONTO “ORA VEJAMOS” 2009



O poeta Alberto Pereira, vencedor do Concurso de Poesia,
“Ora vejamos” em 2008, ano em que editou o livro,
“O áspero hálito do amanhã”, venceu em 2009
a modalidade de Conto, com o trabalho “A última fotografia”,
dedicado a João Aguardela,
com quem conviveu meses antes de este ter falecido.
Nunca é demais recordar que o líder dos Sitiados,
foi mentor dos projectos Megafone, A Naifa e Linha da Frente,
tendo este último consistido, na interpretação de textos
de poetas portugueses por parte de várias bandas nacionais.

A modalidade de Poesia foi ganha este ano por Isabel Solano,
com o poema “Silêncios”.


FRAGMENTOS DO CONTO ´"A ÚLTIMA FOTOGRAFIA"


"Passo os dias estendido nesta cama, sei de cor tudo o que aqui acontece. O zumbir dos alarmes, o horário em que os médicos e enfermeiros me visitam, as auxiliares que todas as manhãs vêm de esponjas em punho e me esfregam de forma tão rápida que me sinto como um automóvel a ser lavado numa estação de serviço; a boca que fica muitas vezes suja, como uma fossa a coleccionar restos de comida. O creme gorduroso com que me massajam, o braço picado de fazer análises de rotina, a psicóloga que tenta salvar-me da depressão. Os exercícios que o fisioterapeuta me ensina e que não consigo fazer. A empregada de refeitório que repete as dietas que já me enjoam. A mulher desdentada que limpa o chão, o voluntário de bata amarela que sai de casa para o hospital porque ainda não acredita que está reformado. Conheço também este quarto. As duas camas separadas por um cortinado velho, o lavatório branco com a torneira cromada onde corre apenas água fria, as mesas-de-cabeceira com gavetas pequenas e as cadeiras de plástico arrumadas ao lado do armário. Conheço tudo isto e também Hafid, que nesta manhã de Outono quis imitar o ciclo das estações e partir da vida como as folhas que lá fora se desprendem das árvores.
Estendido no leito, junto à janela, está o velho fotógrafo. Tem a face pálida e os lábios roxos. No corpo o sangue parece ter sido sugado. Os membros esqueceram o movimento, os músculos suspensos sobre os ossos em breve ficarão duros.
Como sabem, ao princípio não simpatizei com ele, porque ninguém gosta que lhe chamem cobarde, senti até repugnância, mas com o tempo tudo mudou. Habituei-me à sua rotina. Levantava-se cedo, tão cedo que por vezes a cor negra da noite não se apagara do horizonte. Sobre o tampo extensível da mesa-de-cabeceira pousava a bacia de alumínio com água tépida, espalhava o creme no rosto e desfazia a barba. Em seguida saía do quarto para o duche matinal, regressava trinta minutos mais tarde e dava então início a um ritual que sempre me impressionou. Guardanapo à esquerda, tigela ao centro e seringa à direita. Quando puxava a camisola para cima, lá estava o tubo de plástico enfiado na barriga. Tirava-lhe a tampa, aspirava o leite com a seringa e em pequenas doses despejava o pequeno-almoço dentro de si. Descia depois até à praia para comprar o jornal e só regressava perto do meio-dia. O resto do tempo passava-o aqui, neste quarto, junto a mim."






"Quero tocar à campainha, mas não consigo. Ninguém aparece.
O céu está carregado de nuvens e pela escassa claridade da manhã adivinha-se que choverá em breve.
Que dia triste para morrer.
Quando olho para aquele canto, vejo Hafid, apresentando-me o mundo lá fora. Nunca espreitei pela janela, mas conheço todos os lugares para lá dela. Conheço-os, porque ele os relatou.
O mar do outro lado da estrada. A praia com conchas esmagadas junto à rebentação, as algas a flutuar ao sabor das marés, as pedras cobertas de musgo, o mexilhão agarrado às rochas junto à falésia. E as gaivotas, essas nunca param, ora no solo a disputar pedaços de comida, ora no céu a sobrevoar a costa. Até do bar sei o nome, “São Pedro”. A esplanada com mesas brancas e cadeiras de ráfia, o chão de madeira manchado pelo sal, o tubarão de borracha pendurado no tecto, o toldo transparente que desce quando o vento sopra com força. E os pescadores, esses matam as horas a lançar anzóis para as profundezas do mar, na esperança que um peixe justifique os momentos de solidão. Falou-me também de um homem que passa o dia na praia de pá em punho a tapar os buracos mais fundos, nunca percebi porquê, mas também nunca lhe perguntei.
Ao final da tarde debruçado sobre o parapeito da janela, Hafid fazia-me sonhar.
Falava do crepúsculo como um poeta.

“O sol desce ao ritmo de um caracol.
O céu está em chamas.
Os barcos ancorados como brasas vão-se afundando
na cor ardente do horizonte.
Desmaia sobre a água uma brisa fria,
tudo escurece lentamente.
A fogueira apaga-se, há apenas cinza no céu.
Chegou a noite.”

Depois fechava a janela e eu sabia que o dia tinha chegado ao fim.
Os meses passavam, as fotografias sucediam-se, as histórias eram cada vez mais interessantes. Tornei-me um viciado destes momentos, de ver o velho sentar-se perto de mim ao início da tarde, de o ouvir contar pedaços de uma vida que mais parecia um puzzle captado em vários lugares da terra. Mas quando ao puzzle apenas faltava uma peça, algo de estranho aconteceu.
Hafid recusou-se a mostrar-me a última fotografia.
O homem calmo deu lugar a outro que se transfigurou. Ficou irritado, diria mesmo que teve um ataque de fúria, o seu corpo tremeu, os olhos ficaram rubros, tão rubros que se via a agitação nas pupilas. A minha insistência para observar a derradeira imagem perturbou-o tanto, que a feição serena se desvaneceu por completo. Recusou-se a fazê-lo e saiu do quarto batendo a porta com violência. Só voltou ao anoitecer, sem que um murmúrio se ouvisse.
Durante um mês, deixei de sentir os cheiros da praia, a rebentação das ondas junto à falésia e até de imaginar as mulheres na areia a entregarem o corpo aos raios de sol. Apagaram-se as cores do crepúsculo porque a sua boca se fechou e passei a perceber que a noite chegava, somente porque a claridade desaparecia do quarto.
Mas há três dias, decidiu quebrar o silêncio. Sentou-se de novo junto a mim e abriu o álbum de fotografias como nos velhos tempos. Abriu-o precisamente na imagem que nunca me quis mostrar. Disse então:
- Esta foi a fotografia que arruinou a minha vida, foi a última que tirei já lá vão alguns anos. Ganhei com ela o prémio Pulitzer de fotojornalismo.
Observei-a atentamente, era medonha. “Via-se uma menina vergada sobre a terra seca, a figura esquelética de um corpo desnutrido, esgotado pela fome. Atrás dela, em segundo plano, a figura negra e atenta de uma ave à espera da sua morte.
Depois, sem que eu lhe perguntasse nada, Hafid começou a falar."


Alberto Pereira