domingo, 22 de novembro de 2009

One Hundredth Of a Second e conto "A última fotografia" de Alberto Pereira relatam o drama dos fotógrafos de topo


Não deixa de ser curiosa a ligação entre o filme "One hundredth of a second" e o conto "A última fotografia", de Alberto Pereira.
O fotógrafo que habituado a espreitar o mundo pela lente de uma máquina, se vê depois confrontado com a crueldade das imagens que o levaram ao topo.
As imagens que o colocam onde sempre ambicionou, são as mesmas que o arruínam. Assim aconteceu com Kevin Carter, que acabou por se suicidar depois ter ganho o prémio máximo da fotografia, a famosa imagem do abutre que aguarda pacientemente que uma criança desnutrida morra, para a devorar.
Mais um triste exemplo que a realidade presta ao imaginário.


Aqui fica um pouco do conto "A última fotografia", de Alberto Pereira que venceu o Concurso "Ora, vejamos" 2009, conto este dedicado ao músico João Aguardela, que faleceu em Janeiro deste ano.

"Hafid recusou-se a mostrar-me a última fotografia.
O homem calmo deu lugar a outro que se transfigurou. Ficou irritado, diria mesmo que teve um ataque de fúria, o seu corpo tremeu, os olhos ficaram rubros, tão rubros que se via a agitação nas pupilas. A minha insistência para observar a derradeira imagem perturbou-o tanto, que a feição serena se desvaneceu por completo. Recusou-se a fazê-lo e saiu do quarto batendo a porta com violência. Só voltou ao anoitecer, sem que um murmúrio se ouvisse.
Durante um mês, deixei de sentir os cheiros da praia, a rebentação das ondas junto à falésia e até de imaginar as mulheres na areia a entregarem o corpo aos raios de sol. Apagaram-se as cores do crepúsculo porque a sua boca se fechou e passei a perceber que a noite chegava, somente porque a claridade desaparecia do quarto.
Mas há três dias, decidiu quebrar o silêncio. Sentou-se de novo junto a mim e abriu o álbum de fotografias como nos velhos tempos. Abriu-o precisamente na imagem que nunca me quis mostrar. Disse então:
- Esta foi a fotografia que arruinou a minha vida, foi a última que tirei já lá vão alguns anos. Ganhei com ela o prémio Pulitzer de fotojornalismo.
Observei-a atentamente, era medonha. Via-se uma menina vergada sobre a terra seca, a figura esquelética de um corpo desnutrido, esgotado pela fome. Atrás dela, em segundo plano, a figura negra e atenta de uma ave à espera da sua morte.
Depois, sem que eu lhe perguntasse nada, Hafid começou a falar.
- Esperei cerca de vinte minutos que o abutre se fosse embora, mas ele estava concentrado na sua presa, aguardava o derradeiro fôlego da criança. Movimentei-me, mas algo me fez parar. Tinha à minha frente um momento único, a fotografia que iria impressionar o mundo. Hesitei, mas sabia que seria a melhor de todas. Escolhi o ângulo, as mãos estavam firmes, a brisa era sufocante. Senti o suor escorrer-me na testa, mas isso não foi suficiente para me perturbar. O abutre apoiava as patas brancas sobre um arbusto ressequido, o pescoço estava ligeiramente inclinado para a frente e a plumagem negra totalmente recolhida. Premi o botão e registei o momento. O abutre e a criança não se mexeram. Corri então na direcção do animal para que ele se fosse embora, este abriu as asas e levantou voo, mas ficou a sobrevoar a zona.
- E a criança? – perguntei.
- Essa, continuou prostrada no chão, com os braços magros apoiados na terra seca e os dedos a segurar a cabeça que era maior que o resto do corpo.
Havia um campo de ajuda alimentar a cerca de um quilómetro, uma distância impossível de alcançar para quem nem sequer tinha força para pestanejar”.[1]
- E o que fez?
- Não vai acreditar, mas abandonei o local o mais rápido possível.
- Você é um abutre!
- Talvez, na época várias vozes se levantaram contra mim.
- Porque não fez nada?
Hafid ficou em silêncio.
- Porque não fez nada?
As lágrimas deslizaram-lhe pela face.
- Havia um rígido código de conduta entre os fotógrafos nestes cenários de miséria, estávamos proibidos de nos aproximar destas pessoas pelo perigo de contrair doenças.
- O que vale isso, comparado com uma vida?
- Nada!
- Então porque actuou assim?
- Ainda hoje me arrependo de não ter ajudado a menina.
- E o que aconteceu à criança?
- Já não vi, certamente morreu e foi devorada minutos depois pelo bico faminto da ave de rapina. Eu estava habituado a ver o mundo por uma lente, essa era a minha paixão e na altura não dei conta que praticava um acto tribal, ao abandonar no solo alguém que podia ter sido salvo.
Nunca mais fotografei depois desse dia.
Mas o pior estava para vir. Até os que me atribuíram o prémio me criticaram meses mais tarde. Amargurado isolei-me, consumi drogas, passei horas com uma garrafa na mão a beber álcool em quantidades dignas de desfazer um fígado em menos de nada. Os dias foram passando, fiquei só, os amigos desapareceram. Os críticos faziam-se ouvir de uma forma tão cruel que me tornei um farrapo. A pressão era tanta que não aguentei.
- O que fez?
- Pensei em suicidar-me.

[1] – Relato baseado nas descrições existentes sobre a
fotografia de Kevin Carter, Prémio Pulitzer 1994

2 comentários:

H. Sousa disse...

Alberto, o teu conto foi muito bem esgalhado! Parabéns! Ao mesmo tempo, há a tristeza que é o constatar de uma tal realidade.

Anónimo disse...

Querido Amigo, Parabens pelo conteudo deste drama. Foi verdadeiro e infelizmente, existem pessoas que nunca viram esta fotografia que já correu mundo há alguns anos... Parece-me que a estou a ver no primeiro email que recebi. É uma verdadeira obra-prima esta imagem. Causa-nos um arrepio profundo ao olharmos bem para ela. Aquela criança paupèrrima, toda vergada e completamente esquelética de um corpinho desnutrido e esgotado pela fome, estando atrás dela afastado a uns escassos metros, um abutre em posição de ataque, aguardando ansiosamente o momento do desfalecimento e morte para atacar a sua presa. QUE FOTOGRAFIA ESPECTACULAR e DRAMÁTICA. Mas depois de ler a entrevista do Kevin Carter é que pude compreender o que ele deve ter sentido naquele momento. Mas a verdade é esta : ninguem pode ser julgado, porque há momentos na vida que são inexplicáveis e demasiadamente tristes para serem justificados e punidos. O que ele fez, qualquer um de nós o poderia ter feito nessa situação, já pensaram nisso ????
MUITOS PARABENS ALBERTO !
Oxalá, MUITOS MAIS LEITORES E AMIGOS TEUS possam ler este teu relato e postem tambem comentarios ao mesmo. Ficas feliz por isso, não é verdade Amigo ??EU SEI QUE SIM, porque já te vou conhecendo e obrigada.
Um beijinho grande .
M. P. (Mena) p.s. Espero que leias este meu comentário. Vou tentar não te avisar agora, como sempe faço, ok???